Os avanços da Biologia perante o Espiritismo
Jorge Cecílio Daher Jr
O
Espiritismo surgiu em uma época em que a Ciência alcançava notáveis feitos. O
final do século dezenove assistia às descobertas das ruínas dos Incas, à
decifração dos hieróglifos egípcios e às escavações dos templos gregos; a
mecânica impulsionava a indústria com suas descobertas, o microscópio seria o
instrumento de perquirição da Biologia e levaria o homem a devassar seu corpo,
para curar doenças e buscar suas origens.
A época de
Kardec é a época de Darwin, antecede em pouco a época de Mendel, e é a época da
glória da sociedade burguesa, do caldeirão das filosofias de exaltação do homem
que nos levaria a duas grandes guerras, sem que perdêssemos a empolgação com as
conquistas, tornando a Ciência, definitivamente, possessão do homem, que pretensamente
o guindou a pés de igualdade com a divindade.
Charles
Darwin, talvez o homem de Ciências mais notável de sua época, não inventou a
idéia que o homem descende do macaco, derrubando a mitologia judaico-cristã da
descendência adâmica. Coube a ele muito mais além de concluir que o homem e o
macaco tiveram, em alguma ocasião temporal, ancestrais comuns, do mesmo tronco,
que depois se diversificariam sob a força natural que coube a ele desenvolver
com primazia, a seleção natural. Seleção natural não é a lei do mais forte, mas
sim a constatação que os seres evoluem graças a mutações em sua programação,
capazes de fazê-los modificar sua interação com o meio externo, tornando-os,
nessa interação, mais aptos a sobreviverem. As idéias de Darwin influenciam não
apenas a Biologia, mas também a Filosofia, a Psicologia, a Sociologia.
Muitos se
utilizam de sua teoria com fins notadamente racistas e muita polêmica gerou no
meio acadêmico o livro A Curva de Bell[1],
uma abordagem unilateral e distorcida, que associou a miséria de negros e
hispânicos a questões raciais, de seleção de uma raça mais apta, no caso os
brancos caucasianos, sobre as demais. Os autores dessa obra esqueceram do
grande legado de Darwin, que diz: “Se a pobreza e a miséria de um homem foi
causada não pelas leis da Natureza, e sim por nossas instituições, grande é
nossa sina.”
Separados
pelo distante tempo interior, pois se Darwin se interessava
pelo palco da
Ciência, o monge Gregor Mendel vivia distante da Academia. Unidos pela visão
comum de enxergar questões onde encontramos respostas, Mendel, por seu amor à
Botânica e acurado senso científico descreveu as leis da hereditariedade e as
regras por elas seguidas e permitiu ao homem a estruturação da idéia de
transmissão de um sistema de memória capaz de determinar características dos
pais aos descendentes, que hoje sabemos estar em sequências de DNA que chamamos
genes. A Genética começa com Mendel mas esse ramo do conhecimento científico
apenas o descobriu no século XX, apesar de seus trabalhos datarem do final do
século XIX, mais precisamente 1885.
A
caracterização que os cromossomas são formados de DNA, e que esse é composto de
ácidos nucleicos pareados, que suas sequências formam uma espécie de alfabeto
que codificam a formação de componentes das proteínas, gerou-se uma corrida
para determinar a forma estrutural do DNA. Coube a Linus Pauling a descoberta
que as proteínas tem estrutura tridimensional e algumas delas uma estrutura
helicoidal, mas o mérito quanto ao DNA coube à dupla Watson e Crick, que
descreveram o DNA como dupla-hélice, que se abre na sua face interior para a
“leitura” do alfabeto genético.
A sequência
de nucleotídeos que formam cada um dos vinte aminoácidos essenciais do
organismo humano, seguida do avanço na codificação das sequências genéticas e
localização dos genes nos cromossomas, abriu as infindáveis possibilidades de
pensar e sonhar que a mente humana é capaz. Os genes tornaram-se explicações de
tudo o que ocorre no homem, quer em seu organismo quer em sua vida de relação,
quer ainda em seu estado mental, sua capacidade de amar, de ser egoísta ou
altruísta. Poderosos, os genes foram vistos como o código de Deus nos seres
vivos que agora o homem era capaz não apenas de identificar, mas de manipular.
Conta-nos a
mitologia grega que Zeus, o supremo deus do Olimpo, vendo que Prometeu, que
criara os homens, detinha enorme prestígio e poder, desceu à terra em seu carro
de fogo, e tirou dos homens a luz, num castigo ao titã e às suas criaturas. Em
meio à escuridão que reinava, partiu em rota ascendente ao Olimpo, mas
Prometeu, com um graveto, rouba o fogo do carro de Zeus, devolvendo aos homens
aquilo que lhes havia sido tirado. Os deuses ficaram furiosos e prepararam
vingança. Coube a Afrodite criar Pandora, uma mulher belíssima que trazia em
suas mãos uma caixa, onde todas as pragas que abateriam os homens estavam
comprimidas, saindo assim que fosse a tampa retirada. Não aceitando o presente
de Afrodite, Prometeu, cujo nome significa o
que pensa antes (de agir), talvez não imaginasse que seu irmão, Epimeteu,
que significa o que pensa depois,
ficasse encantado com Pandora e pedisse o presente a Afrodite. Epimeteu recebeu
Pandora e sua caixa, que, depois de aberta, espalhou sobre os homens todas as
pragas e maldições ainda hoje conhecidas e que nos afetam. Da caixa de Pandora,
a última a sair será a Esperança.
Impossível
não relacionar o presente recebido por Epimeteu, principalmente a caixa que
Pandora trazia, com o momento em que vivemos no que tange às conquistas da
Biologia. Desde a década de sessenta que a genética molecular alcança
progressos incríveis no diagnóstico de doenças raras, desde o período
intra-uterino. Muito se fala em tratamento gênico de doenças, bastando
identificar o gene deficiente e substituí-lo. Até hoje, mesmo conhecendo os
genes de doenças letais, ainda não se foi capaz de promover terapia gênica
adequada. Muita expectativa se criou entre os portadores de Fibrose Cística,
mas ninguém foi curado por terapia gênica.
Para
entender um pouco da caixa de Pandora e tudo que dela sai afetando os homens de
ciência, os colegas médicos da
Associação Médica Católica da Inglaterra e Gales chamaram nosso momento na
Biologia de “o homem brincando de ser Deus”.
Desde a
década de 50 os investimentos na Genética Molecular são
enormes, não faltando
verbas de pesquisas e isso propiciou a capacidade de sequenciar e manipular
genes. À época do projeto Genoma Humano, especulava-se muito sobre as
descobertas que estariam no cromossoma 22, pois dali sairia a cura da
Esquizofrenia, a doença mais cara do mundo, segundo a Organização Mundial de
Saúde. Nada se descobriu, para a frustração de muitos cientistas. Isso não
impediu de sequenciar-se genes importantes e outros ainda pouco conhecidos.
Questão de grave impacto, quando tratamos de manipulação gênica, é a evidência
de que permanece vivo o Eugenismo, que é a tentativa de aprimoramento da raça
humana. Essas idéias marcaram dolorosamente o homem durante o Nazismo, quando
atingiu o clímax no sacrifício de milhares de judeus, na quase erradicação dos
povos ciganos, no uso de cobaias humanas em experiências somente permitidas com
animais.
A eugenia é
uma idéia atuante na mente de alguns brilhantes cientistas que, ou não se
apercebem do risco, pelas consequências que o homem já experimentou, ou
simplesmente desconsideram qualquer risco em favor de seus ideais. O racismo em
estudos científicos sempre foi encoberto por elaborações estatísticas complexas,
que manipulam dados em favor de determinado objetivo, ou é encoberto por visão
culturalmente compassiva. O conhecido psiquiatra forense italiano, que se
consagrou no Espiritismo a partir de sua conversão, Césare Lombroso, defendia
que os criminosos tinham um crânio típico, menor em volume, que se apresentava
exteriormente pela fronte pequena, mãos e pés grosseiros e sulcos faciais
acentuados. Assim eram os criminosos que Dr. Lombroso conheceu, alguns cérebros
que analisou, mas são características de uma população que vivera à margem de
qualquer conquista social na Europa do século passado.
Hoje a
Eugenia está presente nas propostas de concepção a partir de Fertilização In
Vitro após cuidadosa análise genética dos embriões, descartando os menos aptos
em favor dos que são chamados de amostra selecionada pelos profissionais comprometidos
com a venda de descendentes perfeitos. Fazem às avessas aquilo que a Natureza
faz de modo aleatório, escondendo uma sabedoria capaz de ser analisada apenas
sob as vistas da Moral, despida de moralismo barato, mas sustentada por uma
visão que garanta ao homem a autonomia e a dignidade desde as formas iniciais
de vida.
Autonomia e
dignidade devem ser respeitadas no homem desde sua fase embrionária, faz com
que a manipulação gênica de embriões fira profundamente esses princípios chave
da Bioética? Caso consideremos o embrião como dotado de vida, a partir de
quando isso se dá legalmente? A Inglaterra, tentando manter-se à frente em
tecnologia de manipulação gênica de embriões, publicou texto regulatório
chamado “The Human Tissues and Embryo Bill”, em 2006, que permite a qualquer
tempo a manipulação de embriões e células-ovo, criação de quimeras, embriões
transgênicos e clonagem de embriões humanos, com fim unicamente científico, sem
se preocupar com qualquer questão ética.
Ao
manipularmos genes de embriões, buscando aprimoramento de raças, gerando vidas
que são sacrificadas a centenas para preservar uma vida, até que ponto nos
comprometemos nessa brincadeira de fazer de conta que somos Deus? É inegável a
necessidade do aprimoramento científico, mas não justifica o sacrifício de
vidas humanas quando alternativas outras são visíveis e viáveis. O simples
fazer para mostrar-se ao mundo lembra-nos muito a sentença do Eclesiastes:
“Vaidade das vaidades, tudo no mundo é vaidade, não existe nada de novo sob o
sol”.
O
Espiritismo traz o conceito transcendente de vida, que não se inicia
no berço,
nem se encerra no túmulo. Se a visão muçulmana, expressa pela Shari’ah Perspective on Stem Cells Research[2],
permite a manipulação gênica de embriões por entender que a alma se liga ao
embrião a partir do 40º dia, muito ainda tem a Ciência a avançar, inclusive
para determinar quando a ligação do espírito com o corpo efetivamente se dá no
estrito senso da palavra ligação.
Os genes
não transmitem caráter, não dão as características da alma. Quando o projeto
genoma demonstrou que temos poucos genes a mais que os animais vulgares, como
camundongos, muitos deixaram o queixa cair. Aqueles que afirmaram em alto e bom
tom: “Dêem-me o programa genético que farei um homem”, pouco falaram, agora já
sem o tom bravatoso. Muitos pensaram ter descoberto o Espírito, não para
exaltá-lo, mas para rebaixá-lo a epifenômeno, não do cérebro, mas resultante
dos genes. Caindo na realidade, a programação genética serve apenas para
estocar informações para o maquinário celular. Ela não explica as sinapses
cerebrais, pois precisaríamos de um número de genes três vezes maior que o
contido em nosso DNA para justificar as sinapses já conhecidas, que contam-se a
menos de um terço das que possivelmente existam. DNA é molécula encontrada em
células mortas, não significa vida, tanto é que é encontrada em fósseis. DNA
sem o maquinário celular nada pode fazer além de fornecer informações, como uma
estante que carrega livros, estoca códigos. Quem faz o que conhecemos
biologicamente por vida é a célula, esse ser microscópio quem utiliza as
informações dos genes no processar de seu metabolismo.
André Luiz,
em seu livro Evolução em Dois Mundos, dá ênfase à célula, um non-sense na
opinião de muitos, um anacronismo, na opinião de outros, mas uma sabedoria, na
opinião de poucos. Naquela obra, afirma o autor que no campo de estudos a que
ele se filia,
naquele estágio de conhecimento que se encontravam, estavam eles
estudando a estrutura mental da célula.
Para
ilustrar um pouco as repercussões da capacidade obtida, que são extremamente
complexas, comecemos com o episódio ocorrido com o casal do estado do Colorado,
nos EUA, pais de uma filha que apresentava Anemia de Fanconi. Essa doença rara
e grave é passível de cura através de transplante de medula óssea, mas o
sucesso dobra de 40% para 80% quando o transplante é feito a partir de células
do cordão umbilical de doador plenamente compatível. Os pais de Molly haviam
tentado, através de Fertilização In Vitro, por quatro anos, um embrião
geneticamente compatível para salvar Molly. Adam Nash nasceria após ser o
escolhido entre 15 embriões, o único capaz e fornecer as células do cordão
umbilical que salvaram Molly[3].
Mais de 900 testes genéticos foram realizados nos embriões e 14 deles foram
descartados em detrimento do embrião perfeito, capaz de fornecer células de
cordão umbilical para a menina doente.. O que serve de reflexão é que uma
apurada técnica obtida a partir de sérios e prolongados estudos, permitiu que,
para salvar-se uma vida, mais de uma dezena de embriões fossem gerados, testados
e sacrificados, pois apenas um foi implantado e mesmo assim com a finalidade
única de servir como doador de células-tronco capazes de dobrar a taxa de
sucesso na tentativa de cura de sua irmã. Por mais que o médico responsável por
esse tratamento diga que o sucesso obtido justifica qualquer sacrifício, mesmo
de vidas, não se pode deixar de lembrar que estudos mostram que células-tronco
obtidas de adulto podem se diferenciar e se comportar adequadamente, além do
que já existem bancos de cordões-umbilicais, extraídos de fetos gerados com os
fins habituais ou acidentais, que podem fornecer material àqueles que são
compatíveis imunologicamente.
Outro caso
que chamou a atenção da mídia, encontrando repercussão, foi o de uma jovem
mulher, de pouco mais de 30 anos, portadora de grave síndrome neurológica, de
origem genética, que submeteu-se à Fertilização In Vitro, gerando um número
grande de embriões, que foram geneticamente testados para a doença que a mãe
era portadora, e os afetados foram descartados, os pouquíssimos preservados
foram congelados para uso futuro, pelo desejo ardente dela de deixar
descendentes.
Os testes
genéticos muitas vezes são oferecidos como um pacote para descobrir-se as
doenças que acometerão o indivíduo no futuro, numa clara enganação de incautos,
quer pela imprecisão dos testes, quer pela não seleção dos testados, quer pelo
desconhecimento que o gene não gera por si só a doença. Muito se tem explorado,
muito dinheiro tem sido gasto para alimentar pavores infundados ou certezas
cada vez mais incertas, em nome do ganho, da celebração da fama.
A genética
nunca esteve em tamanha evidência entre os leigos e não iniciados quanto a
partir de 1997, ano em que foi anunciado, na
Escócia, o nascimento de Dolly,
primeiro ser vivo clonado através de
uma técnica chamada Transferência de DNA.
Os cientistas recolheram o material genético da mãe de Dolly e implantaram em
células mamárias cujos núcleos foram esvaziados visando receber o material que
formaria Dolly. A equipe do Dr. Willmutt formou 277 embriões e apenas um
mostrou-se capaz de desenvolver, no caso a ovelha tão famosa.
Com Dolly o
vislumbre de clonar-se humanos passou a tornar-se realidade quase palpável.
Número crescente de publicações dão conta da clonagem de vários animais de
laboratório, a partir da transferência de DNA, gerando já uma estatística de
taxa de sucesso de 2%, com um gritante fracasso de 98%. Interessantemente,
desses 2% de sucesso, um número grande deles apresenta doenças graves e já são
descritas pelo menos 150 doenças entre os animais gerados por clonagem através
da transferência de DNA. O porquê da alta taxa de fracasso ainda não se sabe. Se
o clone humano virou realidade entre nós, brasileiros a partir de novela global,
a China anunciou, mesmo antes do médico italiano Severino Antinori, que tinha
dez clones humanos. Estabeleceu-se uma corrida para saber-se quem será o
primeiro a mostrar seu clone humano, um troféu que terá o prêmio não apenas da
opinião pública, mas o grave peso político.
A técnica que
fez gerar Dolly é aparentemente simples, mas a pífia
taxa de sucesso mostra
como é complexo o processo. Quando o
espermatozóide funde-se ao óvulo,
descarregando seu material genético a fundir-se com aquele da célula receptora,
esse par de cromossomos diferentes entre si, partindo de um estado de repouso
engendra no mecanismo celular um processo de rápida multiplicação celular, o
que virá a ser um embrião.
Esse
processo de reprodução a partir de cromossomas em repouso garante um risco
mínimo de alterações nos cromossomas que, em alguns casos, geram doenças como a
Síndrome de Down e em outros são incompatíveis com a vida. Na técnica de
clonagem, uma célula receptora tem seu núcleo vazio preenchido pelo material
genético do doador. Não se tem garantia de que esses cromossomas estão em
estado de repouso e o fato de se ter uma probabilidade elevada de estarem
atividade, faz surgir o alto índice de fracasso e, mesmo nos poucos casos de
sucesso, o risco de alterações cromossômicas é grande. Isso nos leva fatalmente
à pergunta para mais essa questão saída da caixa de Pandora, supondo o sucesso
e a aceitação plena da clonagem humana, que tipos de desenvolvimento anormal
deveremos aceitar? Aceitar para quem?
Não
esqueçamos que não estamos formando um objeto, mas estamos diante de uma vida
humana que surge. Ainda refletindo sobre o que vai saindo da caixa de Pandora,
superando essas questões graves sobre o desenvolvimento do embrião humano
clonado, caímos em questões éticas mais graves. Se uma mãe tem um filho morto
em acidente, mas dele é retirado tecido vivo, qual o limite a ser aplicado ao
desejo dessa mãe em fabricar um clone dessa criança? Por mais que saibamos o
processo gera corpos, e não espíritos, como mais adiante iremos debater, se é
válido o desejo de substituir o filho morto por um geneticamente quase
idêntico, será válido o desejo de outra mãe querer ter um filho sobressalente
congelado no nitrogênio líquido, pronto para vir ao mundo após implante em um
útero receptor, em caso de morte ou doença grave do original? Existe fronteira
demarcada entre o desejo de uma e de outra?
Continuando o
raciocínio, um homem casado, pai de três filhos, por
algum motivo é levado a
clonar um embrião a partir de seu material
genético, quem serão os pais de
direito da criança, uma vez que
geneticamente os pais seriam os pais daquele
que forneceu o material
genético. Essa criança não terá irmãos genéticos, pois
não
compartilhará da mesma carga genética dos filhos de sua matriz celular.
Terá ele poder
sucessório sobre o doador caso a esposa dele, o doador, não consinta
com a adoção?
Clonar
seres humanos com finalidades reprodutivas tem gerado tanto problema atualmente
que quase já não se fala nesse tipo de clonagem, não ser nas saudades da
novela, pois a moda agora é falar-se em clonagem terapêutica, a utilização da
clonagem para que se formem
doadores de células-tronco, que se transformarão
em qualquer tecido ou órgão humano. Chama a atenção que, em Março de 97, um mês
após o anúncio de Dolly, o Senado Norte-Americano convocou reunião através de
um comitê específico de Saúde pública, seguindo também a convocação
presidencial e a instalação de um Comitê Nacional de Bioética. Tratando de
clonagem reprodutiva, representantes das indústrias de biotecnologia anunciaram
que não tinham interesse na clonagem reprodutiva, mas na utilização da técnica
para clonagem terapêutica, para a fabricação de órgãos.
Como
falamos de indústrias, falamos de venda de tecnologia, ou seja de um comércio
de seres vivos. O processo de clonagem terapêutica visa formar embrião de cerca
de oito dias de vida, onde se apresenta a fase de blastocisto, momento em que o
embrião está repleto de células-tronco, objeto dos almejados transplantes de
órgãos. Até aqui o processo é o mesmo da clonagem reprodutiva, mas a partir
dessa fase o embrião tem seu desenvolvimento interrompido, passando a ser
apenas um rico banco de células. Como cada célula se diferencia em tecidos
específicos não se sabe, mas já foi possível fabricar-se tecido renal
implantando-se células-tronco em rim de bovinos. Essas células desenvolveram-se
formando um aparelho renal. Detalhes do processo pelo qual ocorreu ainda é uma
incógnita.
O que é também
grave é o fato que a clonagem terapêutica será oferecida a um
custo, pois é
uma técnica que está sendo desenvolvida com fins
puramente comerciais, acima
da questão humanitária, além do que, saindo mais um problema da famosa caixa,
cumpre-nos questionar a questão venda de órgãos, no já existente mercado de
órgãos humanos.
Quem não se
lembra da prostituta de “Os Miseráveis”, que, para manter
a filha após o
desemprego, vende inicialmente seu corpo, uma vez
adoecida, vende seus cabelos
e, por fim, os dentes. Victor Hugo acenava para um mercado real, que hoje
existe sob a forte condenação dos preceitos éticos, mas que tende à legalização
através do reconhecimento de patentes, não de órgãos ou células humanas, pois
são proibidas, mas de técnicas de clonagem, de armazenamento de embriões e de
manipulação desses embriões para o desenvolvimento de órgãos e tecidos.
Um número
crescente de transplantes de coração se dá pelas
consequências dos processos
isquêmicos, como a doença arterial
ateromatosa, que gera angina, infarto e
insuficiência do coração. As
causas desses problemas são multifatoriais, a
incidência deles é
crescente, apesar das várias intervenções sobre a
população, ao longo
dos anos. Ter a possibilidade de um coração reserva a
desenvolver-se se necessário for é consoladora talvez, mas nos lembra muito o
caso de Molly, que teve a vida salva por seu irmão, que apenas nasceu para esse
único objetivo, fato de relevância moral, existir para curar outro, não por ter
sido desejado como pessoa.
Os
transplantes de órgãos realizam-se com uma taxa de sucesso
importante,
chegando, no caso de transplante de rins, a uma sobrevida
de 85% em dez anos,
isso desde a década de 80, graças à descoberta de uma substância
imunossupressora chamada Ciclosporina. Essa droga revolucionou os transplantes,
mudou todos os parâmetros de sobrevida.
Os argumentos
a favor da clonagem terapêutica pesam pela escassez de doadores em todo o mundo
mas o peso de se usar órgãos como mercadorias os prudentes, engana os afoitos.
Continuando a sair da caixa, mais uma questão se põe à reflexão: uma vez
desenvolvida a técnica de clonagem terapêutica, é justo que toda a população
tenha um clone como reserva técnica de órgãos? Aqueles que já nascerem com
problemas não podem fazê-lo, pois o clone também teria problemas, mas não
seriam esses com predisposições e doenças genéticas os que mais seriam
favorecidos com o transplante de órgãos obtidos a partir de células-tronco?
Para confundir um pouco mais, estudos de há poucos anos mostram que pâncreas
transplantados a pacientes diabéticos também desenvolveram diabetes, após
11anos, em 100% dos casos. Com órgãos fabricados a partir da reserva de um
embrião clonado teriam destino diferente? Infelizmente, creio que a resposta
ainda é não. Continua aberta a caixa de Pandora, dela saindo todas as pragas e
males que o homem poderia experimentar. Todavia, lembra-nos a Mitologia que a
última coisa a sair da caixa que trazia a bela Pandora era a Esperança. Apesar
de todos os males, de todas as pragas, deveria por último dali sair um
sentimento de renovação, mostrando que os deuses do Olimpo não condenaram
perpetuamente a humanidade e que o mito de Pandora talvez seja o mito da
ciência moderna. Para nós, essa Esperança tem nome, poderíamos chamá-la de
Consolador, sem que carreguemos o rótulo religioso, mas ampliando sua
perspectiva a todos os movimentos de regeneração surgidos na Terra, desde o
final do século XIX e unificados pelo Espiritismo.
Cabe à
Ciência Espírita o estudo do Princípio Espiritual e sua relação com o Mundo
Espiritual, sendo a mediunidade um instrumento para se alcançar esse fim. Assim
nos diz Allan Kardec em A Gênese, ao tratar da aliança da ciência material com
a ciência espírita. Ao distinguir duas ciências, pois utilizam elas meios,
materiais e métodos totalmente diferentes, não quis Allan Kardec separá-las,
mas vislumbrava a união dessas fontes de saber, que trariam ao homem não
somente o conhecimento de si mesmo enquanto ser biológico, mas de suas origens,
sua destinação final, seu real objetivo na Terra. O Codificador percebeu que a
Ciência teria um limite, que não avançaria além das leis materiais e a aliança
com a Ciência Espírita, que trata do que está além da matéria, seria a
instrumentação que propiciaria o conhecimento pleno e útil ao homem. Mas a tão
esperada aliança entre as ciências espírita e material ainda não ocorreu.
Especificamente
na questão da clonagem, que causa espanto a muitos, como se relaciona o
princípio espiritual com o corpo que se forma? Existe total identidade entre
clone e doador? O que transmitem os genes, realmente? A idéia que transmitimos
pelo sangue características não apenas do corpo, mas também as características
da alma, sempre esteve presente entre os homens e passou a se fazer mais forte
desde o final do século XIX, reforçado pela Ciência, a mãe de todas as
descobertas que impulsionaram o homem ao auge conquistado no século XX e ainda
hoje desfrutado. O romance do genial Charles Dickens, chamado Oliver Twist é
exemplar modelo dessa idéia.
O primeiro
encontro de Oliver Twist e o pequeno trapaceiro Jack
Dawkins numa rua de
Londres mostra o contraste entre eles. Oliver,
filho de nobre donzela, deixado
órfão em uma instituição, apesar de
criado sem qualquer requinte de educação,
longe das finezas da corte,
e, ressalta o autor, sem qualquer manifestação de
amor, tem a postura
digna, a face fina, de nariz afilado, cabelos louros e
cacheados e,
muito mais, a inata postura nobre, não arrogante, porém recheada
pela
honestidade, pelo brio do caráter, pela força do espírito. O jovem
menino de rua, ao contrário, tem a face grosseira, nariz achatado, como
qualquer menino de rua. O romance mostra que Oliver, em sua jornada ao
encontro de suas origens, tem essa postura nobre herdada pelas características
de seu sangue, pois é nobre como os pais, que transmitiram a ele esse poder, o
poder da natureza, contra a natureza. A idéia que transmitimos características
muito além de físicas, mas morais, através de nosso sangue persiste ainda
hoje, mas já não chamamos mais de sangue nobre, mas, talvez, de genes nobres.
Existe um
estudo onde o caule de uma planta mãe foi dividido em três porções e cada uma
dessas partes plantadas em altitudes diferentes. Essas plantas eram clones da
planta original, que serviu de modelo de comparação. A depender da altitude, as
plantas reagiam de modo diferente, gerando plantas outras distintas em maior ou
menor intensidade em relação à matriz.[4]
Outro ponto
de estudo interessantíssimo é o da evolução dos
rinocerontes. Temos dois tipos
de rinocerontes, que surgiram no mesmo período cronológico, um na África, que
tem dois chifres no nariz, outro na Índia, que tem apena um pequeno chifre em
seu nariz. Partiram da mesma matriz e não se explica a diferença entre eles por
alterações em seus genes. O que está além dos genes e nos toca diretamente o
sentido, chama-se fenótipo. Por fenótipo podemos descrever todas as palpáveis,
mensuráveis do ser vivo, as plantas geneticamente idênticas têm fenótipos
distintos, o mesmo se dá com os rinocerontes. O que faz a diferença de
resultados entre o que seria esperado para determinado genótipo e o fenótipo
efetivamente encontrado é chamado pela ciência de normas de reação.
Essas
normas de reação são as alternativas de resultados oferecidos ao genótipo, que
podem ser totalmente distinto do esperado. Se ainda não se pode descrever os
fatores responsáveis pelas normas de reação que interferem no genótipo para a
formação de fenótipos (seres!) distintos, permitam-nos especular, vamos buscar
no
Princípio Espiritual, objeto da Ciência Espírita, a causa! Ao campo mental
das células, que já é um fator a determinar normas de reação distintas,
sobrepõe-se o campo mental do espírito, expresso através do perispírito que, ao
reencarnar, impõe sua programação própria, sua identidade. Esse ser complexo,
descrito como energético por partilhar de leis sutis e interferir nas leis
biológicas que regem o corpo físico, influenciado por essas leis enquanto
reencarnado e no instante mais ou menos longo da desencarnação, serve de molde,
não de cópia, para comportamentos celulares únicos, no campo hoje limitado da
genética.
Os estudos
do Dr. Ian Stevenson, principalmente seu último livro, chamado A Biologia em
Face da Reencarnação, mostram a ocorrência de marcas de nascença, que ocorrem
no ser reencarnante sem substrato genético, relacionando com eventos que
geraram a morte traumática do ser, em reencarnação imediatamente anterior. O
Dr. Ian Stevenson publicou o trabalho com o peso de um autor consagrado no meio
científico, respeitado pela seriedade de seus trabalhos, ocupando dois volumes
de obra extensamente documentada.
Mais que
fatores genéticos a influenciar nos resultados do fenótipo,
existem
características humanas como a linguagem, o comportamento, as emoções, que não
são transmitidas geneticamente. O clone de um
brasileiro criado no Japão,
falará japonês, pois a linguagem não é
transmitida pelos genes. Sua capacidade
mental será única e poderá ser totalmente distinta de seu molde, pois as
sinapses cerebrais não
obedecem modelos genéticos para seu desenvolvimento.
Mais que isso, o clone poderá apresentar doenças que jamais serão apresentadas
pelo molde, uma vez que alterações estruturais nos cromossomas são muito
plausíveis de ocorrer em clones. O
Espírito é elemento constitutivo da Natureza e anima as formas materiais dos
seres vivos, inicialmente como princípio espiritual, mas nas formas humanas
encontram a plenitude do que entendemos por marcas do Criador em cada criatura,
de forma mais vibrante e desafiadora, somente no homem o princípio espiritual
torna-se Espírito com conotação moral, pois somos seres morais. Se temos a de
gerar e aprimorar corpos, não temos a capacidade de gerar espíritos. A primazia
sobre o corpo não é obtida através dos genes, mas a partir do corpo espiritual
que o espírito reencarnante traz. Ainda que tentemos aliviar doenças, porque algumas
doenças são perfeitamente evitáveis, talvez estejamos distantes da capacidade
de aliviarmos sofrimentos. O ser não sofre porque adoece ou tem a morte
próxima.
Esse erro é da visão utilitarista da sociedade ocidental,
desenvolvido nos últimos 60 anos. Paradoxalmente, a necessidade de erradicar-se
toda forma de sofrimento, desde as mais legítimas, que dizimam pela miséria
vidas inocentes, até as mais bizarras, que visam retardar o envelhecimento e
prolongar a vida no corpo, vendem a idéia de que tudo o que é contrário ao bem
estar físico é causa de sofrimento. Os espíritos amigos, tratando da medida da
felicidade que podemos obter, lembram-nos, em O Livro dos Espíritos, que temos
um senso que diz o que é abuso, que são nossos sentidos. A comida excessiva,
que às vezes gera prazer, é causa de doenças que matam mais que a fome; as
emoções obtidas por experiências quase extremas, desequilibram a homeostase; a
necessidade de ser feliz, traduzida pelo consumo de bens pouco duráveis, pelas
aparências que não enganam a si mesmos, por não viver conforme as próprias
convicções, ou não ter qualquer convicção própria, geram a depressão e a
demência.
Ante as
pragas saídas da caixa de Pandora, calmamente espera o Espiritismo sua vez de
ser auscutado pelos homens, pois é o hino de esperança a lembrar-nos que nossa
pátria verdadeira não se conta entre os limites do mundo físico, que somos
essencialmente espíritos, que nossos corpos são sagradas vestes, mas apenas
vestes que teremos de despir quanto estiverem rotas e sem serventia.
[1] Herrnstein R.J. , Murray C, The Bell
Curve, 1994, Free Press
[2] Shari’ah Perspective on Stem Cells
Research, citada em http://www.islam101.com/science/stemCells.htm
[4] Lewontin R., The Triple Helix, 2000,
Harvard Press
Um comentário:
Quero parabenizar o autor pelo belíssimo texto o qual não parei de lê-lo a não ser ao término de ler sua última frase. Obrigado por ter escrito isso, contribuiu enormemente para a minha formação acadêmica como estudante de medicina e para o meu trabalho de conclusão de curso que será sobre medicina e espiritualidade.
Postar um comentário